sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Jóias de Família, de Zulmira Ribeiro Tavares - Análise da Obra - UFMG 2012






“Se a falsidade é o tema central destas Jóias de Família, a verdade não será aquilo que encontraremos, resplandecente, no final da jornada”.


Rodrigo Naves


A OBRA
  
Publicado em 1990, Jóias de família afasta-se do quadro da ficção brutalista e da ficção marginal mais significativa, representando o todo social a partir de outro ponto de vista. 
A novela faz das encenações da elite paulistana sua matéria, elegendo centralmente o foco de uma mulher que aprendeu a se valer das falsas aparências, vigentes em seu meio. 
Aproxima-se da prosa machadiana, de um ângulo relativamente novo, que é o da mulher rica, ou de família rica, agarrada às ruínas do antigo patrimônio.
Em Jóias de família é apresentado o falseamento da realidade. 
A visão que temos é da perspectiva interna de uma classe que pode jogar com a realidade à sua volta
  • Esse falseamento torna-se uma aposta formal astuciosa: fazer do engano marca estrutural do livro.
  • O que Zulmira procura com seu realismo é dar representação a uma dinâmica social não só por detrás, mas na própria aparência das relações sociais e identitárias. É como brincar com as fachadas.
O título do romance condensa por meio da  metáfora, “jóia”, tanto as contradições e ambivalências dos sentimentos inconscientes que informam e conformam o imaginário social brasileiro, no que se refere à instituição da família nuclear burguesa e sua permanência patriarcal.
O título também aciona a dialética do par contraditório ilusão/alusão. 

No entanto, o romance pode ser lido de forma linear tendo a falsidade e a mentira como tema central, marcado que é por segredos e mistérios indizíveis segundo a tradição conservadora da família burguesa no Brasil, assentada que está no absolutismo afetivo.


Diante disso, é preciso destacar que são exatamente as ilusões, falsidades e mentiras, presentes na trama, que aludem às contradições do processo de aburguesamento ocorrido a partir da década de 1930 no Brasil.



A RELIGIOSIDADE

A narrativa literária de “Jóias de Família” aborda a família nuclear burguesa e a permanência do patriarcalismo constitutivo do seu padrão conservador, moralista e autoritário. 
O puritanismo católico é tratado no romance por meio de temas, práticas e rituais consagrados pela ideologia e cultura religiosa que conformam o escopo doutrinário teológico e filosófico da cristandade ocidental e suas repercussões no mundo luso-brasileiro.
Os temas enfocados oriundos da ideologia religiosa cristã tais como: 
  • o casamento como sacramento
  • a religiosidade
  • a sacralidade da família
  • a virtude feminina alicerçada na obediência ao marido
  • a moralidade da justiça e do direito canônico; 

A narrativa também aborda temas transversais relacionados à moralidade, a questões sociais  e à religiosidade:
  • o homossexualismo
  • o adultério
  • os negócios escusos
  • o racismo
  • o preconceito social 
  • o conflito de classe
O NARRADOR
O ponto de vista da narrativa é distanciado e, de certo modo frio; ou seja, um narrdor onisciente neutro.
Embora estejamos diante de narrador impessoal, ele se vale de regalias com relação à narrativa afins às de classe: dentre elas, a técnica de transitar por diversos assuntos e épocas das vidas narradas, assinalando o passe de mágica ao deslizar velozmente por tudo,como o onipresente cisne de Murano; ou a técnica de colocar observações agudas em tom de comédia leve,às vezes entre parênteses,como se quisesse não mais que um olhar crítico en passant.
Este narrador de 3ª pessoa vai acompanhando a mocinha de família, e depois a matrona já experiente, que aprende sorrateiramente a se desviar (do casamento de aparências, do sobrinho interesseiro, do medo que sente das empregadas) e a se reinventar.
A ironia,ambiguamente, ora indica distância com relação ao mundo narrado e sua lei de cinismos, ora revela um estar à vontade desconcertante, guardando seu veredicto para o final.

O ESPAÇO
O cenário da narrativa é a cidade de São Paulo, no período da década de 30 à década de 60. Porém o espaço é tratado tanto no campo físico/geográfico, quanto no campo psicológico.
O espaço psicológico é bastante relevante para a narrativa, pois toda a obra tem ligação às recordações da protagonista, Maria Bráulia.
O espaço físico/geográfico se divide em dois locais:
  • Casa na Eugénio de Lima (espaço do casamento / espaço aristocrático)
  • Apartamento no Itaim-Bibi (espaço da viuvez / espaço burguês)
A  descrição dos elementos que compõem o espaço dá a narrativa aparência de texto teatral: “A cortina está aberta e o palco iluminado e cheio de ouro é como maio derramado sobre esses prédios”.

O TEMPO
  • Cronológico: não apresenta grande importancia na obra, pois o primeiro plano da obra acaba sendo a narrativa das lembranças da protagonista.
  • Psicológico: é o que predomina. A todo momento temos a narrativa se estruturando em torno das memórias de Maria Bráulia.
Tempo histórico
A narrativa apresenta referências à Getúlia Vargas e aos Galinhas Verdes.
Revoada dos galinhas-verdes foi o nome pelo qual ficou conhecido o confronto armado que teve lugar na Praça da Sé, em São Paulo, em 7 de outubro de 1934.
Nesse confronto anarquistas, comunistas, sindicalistas e trotsquistas, organizados na Frente Única Antifascista, se posicionaram contra a realização da marcha dos cinco mil organizada pela Ação Integralista, organização que congregava correntes nacionalistas e fascistas, dirigida por Plínio Salgado.
A nomenclatura "Revoada dos galinhas-verdes" se deve ao seu desfecho onde integralistas, que usavam camisas verdes, correram amedrontados para todos os lados, deixando ao chão suas camisas. 
Este ato foi um grande responsável pela desarticulação da Ação Integralista Brasileira, que a partir deste espisódio começou a perder força em todo país, culminado com seu fechamento após a decretação do Estado Novo por Getúlio Vargas.

SIMBOLISMO
O livro segue as características do romance de costumes, muito comum no Romantismo, porém o o que se mostra é um retrato desidealizado das tradições familiares brasileiras.

O próprio título também alude essa quebra da idealização, pois as joias são metáforas das tradições familiares que são transmitidas de geração a geração.


Rubi sangue-de-pombo

Segundo Chevalier e Gheerbant, no Dicionário de Símbolos, o rubi entre outras atribuições simbólicas,  [...] se tornou a pedra dos enamorados, que inebria sem contato. No entanto,  a crer no bom prelado é o olho único e avermelhado que têm no meio da testa os dragões e as serpentes fabulosas. É então, chamado de escarbúnculo. Ela supera todas as pedras, as mais ardentes, lança raios como um carvão aceso, e cuja luz as trevas não conseguem apagar 

O simbolismo da “pedra que inebria sem contato”, alude ao casamento branco e estéril do casal, assim como, o carvão aceso, “cuja luz as trevas não conseguem apagar”, alude ao desejo homossexual que, mesmo nas trevas, explode no discurso
cifrado.
Como o rubi dado pelo Juiz Munhoz a Maria Bráulia é falso, isso representa o caráter falso do marido, que sempre tentava ocultar a sua falsa masculinidade.

A pedra também remete à falsidade das conveções defendidas pela elite. 

A falência, na obra, se materializa de forma econômica (mantendo as joias), da moral (falsos e mentirosos) e do respeito (que se tem por hábito ou por interesse do outro).

Cisne de Murano
Murano é uma ilha próxima a Veneza, famosa pela produção de luxuosas peças de vidro. 

Para Bachelard, "a imagem do cisne é hermafrodito. O cisne é feminino na contemplação das águas luminosas e é masculino na ação. Para o inconsciente, a ação é um ato". 

No simbolismo do romance o cisne de murano é mais um personagem, representa simbolicamente o juiz e, depois de sua morte, Maria Bráulia.

      [...] Como uma imagem-tronco da qual as outras derivam ou para ela afluíam: sempre a mesa redonda com o pequeno lago polido no centro (habitada por uma única e solitária ave de indiscutível dignidade e cujo perfil lhe lembrava vagamente o próprio juiz ao ler os jornais da manhã após o café [...].
  • A relação com a personagem de Maria Bráulia é por sua beleza, que se comporta como  um bibelô; pela impassividade e a representação de classe, mesmo que ultrapassada.
  • Já em relação ao Juiz Munhoz a impassividade da peça também se relaciona, bem como sua forma de exuberante ostentação e o caráter hermafrodita.
Cabochão
O cabochão representava um “escapulário, um bentinho, uma proteção para os aguilhões do remorso”. 
Assim, a protagonista acreditava manter a mensagem cifrada que, se revelada, perdia o poder da magia, da proteção imaginária.
O rubi de cabochão, presente do amante, não era guardado no cofre, onde estava as jóias da família, lugar sagrado para o que representava o pecado.

Cabochão é um termo derivado do francês  caboche, ou  “prego de cabeça grande”. Os cabochões são levemente convexos nas bordas e com a parte superior arredondada e proporcional. 

Na obra, a pedra ganha conotação sexual. O cabochão é que serve de intermediador da relação afetiva e sexual de Maria Bráulia e do joalheiro Armand.

Remete também para a sexualidade viril do joalheiro e ao seu falo. Como diz a personagem Benedita: “nominho do cacete”.

AS PERSONAGENS

As personagens têm durabilidade da trama. A narrativa é apresentada sob dois focos: um linear, segundo uma abordagem cronológica, e outro que se baseia em uma análise mental no ponto de vista da protagonista. 

Ou seja, a narrativa acontece em um período de um dia, do amanhecer de Maria Bráulia ao momento em que ela vai repousar e as interferências do passado se fazem através das lembranças da protagonista, estas anacronicamente.

Maria Bráulia
Maria Bráulia é apresentada como sendo idosa, porém de idade não definida. 
Filha de e uma família rica oriunda da indústria de tecidos, representante da burguesia paulistana dos anos trinta.
Parece  saber do seu valor como atriz dentro da trama.
Casa-­se sem conhecer as preferências sexuais do marido.
Acostuma-se ao jogo hipócrita, torna-se cúmplice das mentiras.
Depois de uma fase de expectativa e angústia, tornou-se amante de Marcel.
Na velhice, tem a ajuda de Julião, sobrinho de seu falecido esposo e a quem havia prometido doar o rubi sangue-de-pombo, após cinco anos de serviço.
O seu mundo é um palco; para ela representar usando suas máscaras. Maria Bráulia sabe que o mundo não é inofencivo como às vezes parece, que o espetáculo não imita a realidade, porém permite enxergá-la.

A protagonista, no início da história é tomada como uma persanagem tímida e passiva, entretanto assume toda a manipulação da trama, tanto na ordem do narrado como na ordem da narração.

Juiz Munhoz
Se mostra um mestre na arte de simular. Aparentava ser um bom partido, um respeitado juiz de direito. 
Engana a noiva e a família da mesma com uma joia falsa, que depois se torna a sua  metáfora. 
Admirava o boxe, para contemplar os atletas musculosos. 
Vive na penumbra, para não chamar a atenção sobre si. 
Amante de seu secretário e fisioterapeuta, é mais um mascarado nesse palco. 
Munhoz morre e sua última palavra foi uma expressão jurídica, em latim: in dubio pro reo, ou seja, em dúvida, o réu é favorecido.

Uma ocasião, tempo depois do casamento, em um dia em que o marido trabalhava em casa, ao abrir a porta do escritório o surpreendera com o seu secretário particular, entretidos numa espécie de ginástica rítmica conjuta, de natureza obscura. Ao darem pela sua presença separam-se imediatamente.

O secretário-fisioterapeuta, cujo nome não é mencionado, é o amante do juiz. Nunca conseguia terminar o curso de Direito e nem se sabe se concluiu o de fisioterapia... Após a morte de Munhoz, Maria Bráulia dá ao secretário um par de brincos de brilhantes e pede para que ele suma de sua vida.

Julião

Julião é o sobrinho parasita, inocente em relação às falsidades de seus tios. É interesseiro, como sua namorada Jurema.  Formado em jornalismo, abandona a carreira para virar secretário de Maria Bráulia, na esperança de ganhar uma boa herança. Tem um amigo chamado Bento.




Marcel de Souza Armand 

é descendente de franceses e portugueses. Joalheiro, parecia-se com a rainha Vitória. Orgulhava-se de pertencer a uma família de tradição católica. Também é assinalado pela hipocrisia. O "cabochão" é a jóia que o liga à amante Bráulia.
Extremamente luxurioso, morre em decorrência de uma “copiosa refeição na França”.


Maria Preta

Maria Preta é a antiga empregada naquela família. Seu nome verdadeiro era Maria Firmina. Como havia outras pessoas na família com o nome de Maria, ela recebe a alcunha de Maria Preta.
Ela acostumara-se à patroa e até impregna-se com preconceitos e fala como ela... 
Mostra-se digna quando é suspeita do sumiço do rubi, afirmando que "o que a mão não leva, a casa acha".



Benedita

Benedita é afilhada e sobrinha-neta de Maria Preta. Antes, era magricela. Depois, encorpou-se. 
Tem a pele cor de caramelo, mora em Santos, mas evita freqüentar a praia, o que faz com que Bráulia lhe pergunte se ela desejava ficar branca. 
Não gosta de seu nome, que lembra pessoa humilde. Prefere ser chamada de Bene. 
Quer estudar biblioteconomia ou ser cabeleireira. Não quer ser doméstica e muito menos ficar naquela família, de quem sua tia parece orgulhar-se. 
Iria trabalhar para Maria Altina, irmã de Bráulia.


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